Presidente de Portugal deve pedir parecer à Justiça antes de decidir veto à lei da cidadania portuguesa

A maior especialista em cidadania, Isabel Comte, declarou que o presidente Marcelo Rebelo de Sousa deverá enviar a lei da cidadania portuguesa ao Tribunal Constitucional antes de decidir se a veta. A jurista considera o texto inconstitucional e denuncia que ele “viola quase todos os princípios” da Carta Magna. A proposta, apoiada pela ultradireita, endurece o acesso de brasileiros e imigrantes lusófonos à nacionalidade e faz parte do novo pacote anti-imigração do governo de Luís Montenegro.

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa deve enviar a lei da cidadania portuguesa ao Tribunal Constitucional (TC) antes de decidir se veta o texto, segundo a jurista Isabel Comte, considerada a maior especialista do país na área de nacionalidade.

“Acho que vai enviar ao TC. Não quero acreditar que deixe passar como está. Princípios não podem ser violados. E a lei viola quase todos”, afirmou Comte em entrevista ao Portugal Giro.

A 11ª alteração da Lei da Nacionalidade foi aprovada no Parlamento na última terça-feira (28), com apoio da ultradireita anti-imigração e da coalizão de centro-direita Aliança Democrática (AD), liderada pelo primeiro-ministro Luís Montenegro.

A proposta aumenta o tempo de residência necessário para o pedido de cidadania e impõe novas restrições aos imigrantes, em especial aos brasileiros, a maior comunidade estrangeira em Portugal.

Principais mudanças na lei da cidadania portuguesa

A nova lei da cidadania portuguesa modifica diversos pontos da legislação atual, tornando o processo mais longo e restritivo. As principais alterações são:

  1. Tempo de residência mínimo: o tempo exigido para brasileiros, cidadãos da CPLP e da União Europeia passou de cinco para sete anos;
  2. Contagem do prazo: os anos só passam a contar a partir da expedição da autorização de residência, ignorando o período de espera;
  3. Demais nacionalidades: o tempo mínimo de residência aumentou de cinco para dez anos;
  4. Sefarditas: fim da concessão automática da cidadania para descendentes de judeus sefarditas;
  5. Perda da cidadania: possibilidade de revogação da nacionalidade para quem cometer crimes graves;
  6. Bisnetos: extensão da nacionalidade originária aos bisnetos, desde que comprovem ligação efetiva com Portugal.

Essas medidas, segundo o governo, têm o objetivo de “harmonizar a legislação portuguesa com os parâmetros da União Europeia”. Contudo, especialistas classificam as mudanças como discriminatórias e inconstitucionais.

“A lei viola princípios fundamentais”, diz Isabel Comte

Isabel Comte, que atuou por duas décadas no Ministério da Justiça, foi categórica ao afirmar que o texto “fere a Constituição”.

“Fere o princípio da proibição da discriminação, ao criar prazos diferentes de residência; fere o direito fundamental à cidadania dos filhos de imigrantes ao exigir cinco anos de residência de um dos pais; e fere a liberdade de expressão, ao associar o comportamento político à integração”, disse a jurista.

Ela também criticou o artigo que prevê a perda de cidadania por crimes graves, por considerar que “vetar comportamento” pode abrir brechas para perseguições políticas.

“Imigrantes que participem de associações poderão ter medo de se expressar. A Constituição garante aos estrangeiros os mesmos direitos dos portugueses”, reforçou.

Críticas à falta de clareza e ao caráter político do texto

Comte afirma que o governo redigiu o projeto sem definir claramente os conceitos jurídicos, deixando para um regulamento posterior a interpretação de pontos centrais.

“Dizem que vão resolver depois por regulamento, mas a lei tem de conter esses conceitos. Só a Assembleia da República tem poder legislativo. O governo não pode deixar para depois”, destacou.

A jurista classifica o pacote como um retrocesso político, impulsionado pelo avanço da extrema direita europeia:

“A lei da cidadania sempre foi adaptada à realidade de Portugal, que era um país de emigrantes. Hoje somos um país que recebe pessoas, mas o governo insiste em medidas excludentes.”

Pacote anti-imigração agrava restrições

A lei da cidadania portuguesa faz parte de um conjunto de medidas do governo que ficou conhecido como pacote anti-imigração. As novas regras dificultam a entrada e a permanência de estrangeiros no país, especialmente de cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Entre as medidas já em vigor, temos:

  1. Proibição de regularização de turistas, o que impede brasileiros de permanecer legalmente após entrada sem visto;
  2. Limitação do visto para procura de trabalho apenas a profissionais qualificados, com prazos máximos de seis meses;
  3. Aumento do tempo de residência regular de um dos pais de um para cinco anos para que os filhos de imigrantes tenham direito automático à cidadania.

Impacto sobre os brasileiros em Portugal

Os cerca de 500 mil brasileiros regularizados, fora os já naturalizados, formam a maior comunidade estrangeira em Portugal e a principal força de trabalho imigrante do país.

Comte afirma que a lei ignora os laços históricos e afetivos entre Brasil e Portugal, bem como o espírito de cooperação da CPLP.

“O governo português alega lealdade europeia, mas é uma mentira. A Espanha exige dez anos de residência, sim, mas tem um regime especial de apenas dois anos para ibero-americanos. Portugal está indo na direção oposta.”

O que acontece agora

Com a aprovação no Parlamento, o texto segue para análise do presidente Marcelo Rebelo de Sousa, que tem três opções:

  1. Sancionar a lei;
  2. Vetá-la parcialmente ou integralmente;
  3. Enviá-la ao Tribunal Constitucional, pedindo parecer sobre eventuais violações da Constituição.

Para Isabel Comte, a última opção é a mais provável.

“Marcelo tem um papel fundamental como guardião da Constituição. Enviar o texto ao Tribunal Constitucional é um gesto de responsabilidade e coerência”, disse.

Repercussão política

O tema provocou intenso debate em Lisboa. Partidos de esquerda, como o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português, acusam o governo de ceder à retórica anti-imigração do partido Chega, que apoiou o texto.

Já a Aliança Democrática (AD) defende que as mudanças são “necessárias para proteger a identidade nacional e garantir segurança jurídica”.

Enquanto o impasse segue, milhares de brasileiros e outros imigrantes aguardam com incerteza o desfecho da nova lei da cidadania portuguesa, que pode redefinir as regras de naturalização nos próximos anos.

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