A interferência da Rússia na Alemanha assumiu proporções inéditas, preocupando agências de inteligência europeias. De acordo com um relatório da Euronews, o Kremlin tem explorado tanto grupos neonazistas quanto organizações de esquerda radical para criar caos, divisão e desconfiança dentro do país.
O caso mais recente foi o das estrelas de Davi pintadas em prédios de Paris após o atentado do Hamas em 2023. Inicialmente visto como um ato antissemita, o episódio acabou ligado a uma operação de desinformação russa. Dois casais moldavos confessaram ter recebido dinheiro de intermediários estrangeiros para realizar as pichações.
O objetivo, segundo as autoridades francesas, não era expressar ódio religioso, mas semear confusão e polarização social, uma tática típica da guerra híbrida de Moscou.
“Agentes descartáveis” e sabotagem por contrato
Na Alemanha, a tática é semelhante. O Serviço Federal de Informações (BND), o Departamento Federal de Polícia Criminal (BKA) e o Serviço Militar de Contra-Inteligência (MAD) já detectaram o uso de “agentes descartáveis”, cidadãos comuns recrutados online para executar tarefas de espionagem, sabotagem e propaganda.
Esses indivíduos recebem pequenas quantias em dinheiro para filmar instalações militares, espalhar mensagens políticas ou realizar pequenos ataques incendiários.
Segundo o analista austríaco Dietmar Pichler, “muitos desses agentes começam apenas compartilhando memes pró-Putin nas redes sociais. Depois, são cooptados ideologicamente e passam a executar ordens diretas.”
O especialista em terrorismo Hans Jakob Schindler, do Counter Extremism Project (CEP), explica que a Rússia não diferencia ideologias. “Não importa se são neonazistas, comunistas ou islamitas. O que interessa é o grau de perturbação que podem causar à sociedade alemã”, afirma.
Extremismo político como ferramenta de influência
A guerra híbrida russa não visa apenas a Ucrânia. O principal objetivo é fragilizar o Ocidente e minar a confiança nas instituições democráticas. Segundo Sinan Selen, chefe do Gabinete para a Proteção da Constituição (BFV), os esforços de Moscou “estão concentrados nas franjas políticas, tanto à esquerda quanto à direita, onde há maior disposição para cooperação ideológica”.
O pesquisador Johannes Kieß, especialista em extremismo de direita, confirma que grupos neonazistas e populistas alemães têm ligações ideológicas com Moscou. Ele explica que a “Nova Direita” europeia substituiu a antiga doutrina racial do nacional-socialismo por um etno pluralismo, conceito segundo o qual cada cultura deve permanecer separada para preservar sua “pureza”.
“Essa visão se encaixa perfeitamente na narrativa do Kremlin, que se apresenta como defensora das tradições, da soberania e da resistência à modernidade ocidental”, destaca Kieß.
Da extrema-direita ao estalinismo
Na outra ponta, movimentos de extrema-esquerda também se alinham, ainda que por motivos distintos. Para esses grupos, a Rússia representa o contraponto ao imperialismo ocidental e à influência dos Estados Unidos e da OTAN.
O portal Redfish, criado em 2017, é um exemplo dessa manipulação. Apresentava-se como uma mídia “progressista” e “anticolonial”, mas investigações da Vice e do governo alemão revelaram que era financiado pelo Kremlin por meio da empresa estatal Ruptly GmbH, ligada à Rússia Today.
Mesmo após o encerramento do Redfish, em 2023, um sucessor surgiu rapidamente: o site Red, operado pela empresa turca AFA Medya, cujo fundador Hüseyin Doğru está sob sanções da União Europeia por ligação com Moscou. O portal é acusado de fomentar protestos pró-palestinos e discursos anti ocidentais na Alemanha.
Populismo e antissemitismo: o denominador comum
De acordo com Kieß, o elo que une esses extremos políticos é o populismo anti elitista, que frequentemente incorpora elementos antissemitas e antiocidentais. “Tanto à direita quanto à esquerda, existe uma narrativa de ‘nós contra eles’, em que as elites liberais e os Estados Unidos são vistos como inimigos. A Rússia se apresenta como o ‘salvador tradicionalista’ desse cenário”, explica.
Essa convergência ideológica cria o terreno perfeito para a propaganda russa. Pequenas ações isoladas — sabotagens, campanhas digitais, fake news — se somam e minam a confiança da população nas instituições democráticas e na imprensa livre.
A guerra híbrida silenciosa
Especialistas classificam essas ações como parte de uma guerra híbrida: uma estratégia que mistura espionagem, desinformação, manipulação psicológica e uso de grupos extremistas para desestabilizar adversários sem recorrer ao conflito direto.
Na prática, a Rússia na Alemanha não busca apenas espiões e sabotadores, mas cidadãos comuns dispostos a espalhar dúvidas, dividir opiniões e corroer a coesão social.
Segundo analistas europeus, trata-se de uma guerra sem fronteiras, travada na mente das pessoas e, até agora, Moscou tem conseguido o que mais deseja: caos, confusão e desconfiança no coração da Europa.