O Senado francês aprovou, na última quarta-feira (29 de outubro), uma reforma histórica na lei de estupro, incluindo pela primeira vez a noção de consentimento explícito. A medida, que ganhou força após o caso Gisele Pelicot, marca uma mudança significativa no sistema jurídico e coloca a França em sintonia com boa parte da Europa.
Até então, a lei de estupro na França definia o crime apenas como um ato de penetração forçada ou sexo oral praticado mediante violência, coerção, ameaça ou surpresa, sem mencionar diretamente o consentimento.
“Anteriormente, se pudéssemos mostrar em um caso que não houve consentimento, mas o agressor não usou violência, essa pessoa poderia não ser considerada culpada”, explicou Catherine Le Magueresse, jurista e defensora da nova lei, à Reuters.
O caso que impulsionou a mudança
A revisão da lei ganhou novo impulso após o julgamento do caso Pelicot, considerado um divisor de águas na França.
Em dezembro passado, Dominique Pelicot foi condenado por drogar repetidamente sua esposa, Gisele Pelicot, e permitir que dezenas de homens a violentassem enquanto estava inconsciente.
O caso revelou uma lacuna grave na legislação: promotores precisavam provar o uso de violência ou coerção, mesmo quando a falta de consentimento era evidente.
Durante o julgamento, parte dos acusados afirmou acreditar que participavam de “jogos sexuais consentidos”, o que gerou indignação e debate público sobre a insuficiência da lei.
No total, 35 homens foram condenados, mas o caso destacou o quanto o silêncio da vítima ainda era interpretado como dúvida e não como negativa.
O que muda na nova legislação
O novo texto, que aguarda sanção do presidente Emmanuel Macron, estabelece que o consentimento deve ser “dado livremente e informado, podendo ser retirado a qualquer momento”.
A lei também determina que o consentimento não pode ser presumido com base no silêncio, na ausência de resistência física ou em interpretações subjetivas do comportamento da vítima.
Além disso, a nova formulação jurídica deve facilitar as condenações em casos nos quais a violência física não é comprovada, mas há evidências de manipulação, pressão psicológica ou vulnerabilidade.
“A definição baseada no consentimento ajuda a educar jovens homens e mulheres sobre a reciprocidade do desejo”, disse Le Magueresse.
Reações e críticas
A aprovação foi celebrada por parlamentares e grupos feministas como uma “vitória histórica”. As deputadas Marie-Charlotte Garin (Partido Verde) e Véronique Riotton (Partido Centrista), principais articuladoras do texto, afirmaram em nota conjunta:
“A França dá um passo essencial na proteção das mulheres e no reconhecimento de que o consentimento é a base de qualquer relação sexual.”
Elas alertaram, no entanto, que a reforma deve ser acompanhada de reforço no apoio às vítimas e melhorias no sistema judiciário, para evitar que os processos recaiam novamente sobre o comportamento das vítimas.
Nem todos, porém, celebraram sem ressalvas. Alguns ativistas dos direitos das mulheres advertiram que o enfoque excessivo no consentimento pode gerar interpretações distorcidas durante investigações, levando a questionamentos indevidos sobre as ações ou palavras da vítima.
“Uma pessoa pode dizer ‘sim’ por medo, pressão ou confusão. O consentimento precisa ser analisado com sensibilidade e contexto”, afirmou a ativista Sophie Poujol, do coletivo Nous Toutes.
Europa adota padrões mais rígidos de proteção
Com a mudança, a França se junta à Suécia, Alemanha, Espanha, Reino Unido e outros países que já têm leis baseadas no princípio de que “só sim é sim”. A transformação legislativa ganhou força após o movimento #MeToo, em 2017, que expôs abusos sistêmicos e pressionou governos a atualizar suas leis sobre crimes sexuais.
Nos últimos anos, a Suécia foi pioneira ao introduzir em 2018 uma lei que criminaliza o sexo sem consentimento, mesmo sem violência. Desde então, diversos países europeus têm seguido o mesmo caminho, redefinindo o que constitui estupro sob a ótica dos direitos humanos.
Um novo paradigma jurídico e social
Especialistas acreditam que a nova lei francesa marca o início de um paradigma jurídico mais moderno e centrado na vítima, onde o foco deixa de ser a resistência física e passa a ser o respeito à autonomia e à vontade da pessoa.
“A noção de consentimento livre e informado é uma ferramenta de educação social, não apenas um conceito jurídico”, concluiu Le Magueresse.
A expectativa é que a sanção presidencial ocorra nas próximas semanas, consolidando a França entre as democracias europeias que reconhecem o consentimento como princípio fundamental na legislação sexual.